29 abril, 2009

Porque não deitas cá hoje?

Ela a passar, apenas se vislumbravam as suas pernas magras e compridas. Estava escuro, ela aproximava-se marcando cada passo com o som dos seus sapatos pretos, no chão molhado daquele parque.
É verdade, ela ia arranjar um amante.

Ainda em casa, disse ao namorado que hoje precisava de tempo para si.
Vestiu a sua saia mais curta, pegou nos seus sapatos novos, bem altos e disse apenas adeus.
Deu por si a cantarolar músicas animadas e de cigarro na mão; passou pela praia onde resolveu pedir que lhe tirassem uma foto.
- Hoje, sinto-me bem. Estou bem na minha pele. É estranho, estou bem por não estar contigo. Estou bem, porque sei que posso voltar.
Foi aquela mesma foto que lhe pagou um café. E foi esse café que lhe fez recusar a companhia.
Seguiu então pela praia, de sapatos na mão, a pontapear a arei.
Ela hoje queria ser diferente. Queria não controlar tudo. Queria que a agarrassem e lhe dissessem o que fazer. O simples acto sem compromisso. Hoje era o seu dia, um dia só para si.
Uma vez na praia, em pleno inicio se Outubro, apenas ela passeava enquanto os surfistas se vestiam e despiam e surfavam também.
Sentou mesmo na areia. Pouco se importava com os corpos nus, morenos e definidos que por ali se mostravam à única mulher presente.
Estava concentrada, com um sorriso seu para si, via o pôr – do – sol sem ter pela mão o seu namorado que ficara em casa; ao mesmo tempo seguia com o olhar, aquele que vestia um fato colorido, brilhava nas suas manobras.
Sentia-se sorrir. Capaz de saltitar, pequenos pulos ao longo da praia, incrível, soltava gargalhadas.
Ouvia as suas músicas preferidas na sua cabeça, ate que alguém a tocou no braço.
Virou-se, deixando o cabelo voar contra o vento, e com um sorriso disse apenas:
- Gostei de te ver no mar.
Sim, era aquele que ela observava, aquele que a cativara.
Tinha o seu cabelo preso no lábio, mesmo antes dele lhe tocar.
Ela continuou o seu passeio pela praia, mas desta vez ele segui a seu lado.
Ele tinha 25 anos, e ela adorava os seus 24 anos.

Saiu para arranjar um amante, e acabou por arranjar um amigo. Conversaram de relações, de amigos e amigas, festas e aniversários. Combinaram estar juntos mais vezes, para se conhecerem, para falarem e passearem pela areia.

Já fazia frio, quando tomaram o seu primeiro café, num café bem quentinho, num ambiente bem descontraído. Apareciam de todos os lados surfistas de prancha na mão, uns branquinhos e outros morenos, mas todos com o cabelo característico; cabelo curto, inclinado para um lado, quase escondendo os olhos, e brilhante, brilhante chegando a parecer raios de sol em fios de cabelos amarelos.
Ela despediu-se e ele recusou-se a deixa-la ir, não sem antes lhe dar a sua camisola tão quente quanto gasta, para que ela não tivesse frio, neste fim de tarde, que se aproximava de um inicio de noite.
- Foi gentil da tua parte – disse ela – obrigado. Volto cá para ta devolver, e retomar a conversa, ou começar uma outra, ou apenas para um passeio. Tanto faz… Virei.

Já a caminho de casa, ligou ao seu namorado, com quem planeava casar um dia.
- ‘Tou amor. ‘Tou com imensa vontade de te ver. Hoje dormes ai em casa, ‘tá bem? Encomendamos o jantar, vemos um filme… quero passar a noite contigo, todos os minutos até amanha acordar novamente a teu lado.
Na verdade, tenho algo para te pedir; mas logo te digo, quando me abrires a porta e eu te beijar.
Até já amor. Amo-te muito.

Foi a ultima vez que disse que o amava, foi preciso um passeio sozinha, conhecer um surfista, para perceber que era com o seu namorado que queria estar sempre, corressem bem ou mal os dias, queria estar casada com ele, não queria pedir-lhe novamente para dormir a seu lado, queria faze-lo todos os dias.
- Um beijo do teu namorado que te adora e te espera.
Também foram estas as últimas palavras que ouviu.
Poucos minutos depois, e com um grande sorriso na cara, de pé pesado e pouco consciente da velocidade a que o carro ia….

Ninguém soube como aconteceu, apenas um homem parou e ligou o 112, depois de eu dizer que não queria morrer, que o meu marido estava à minha espera para jantar.
Não lembro de um momento pior da minha vida. Alias, depois deste momento, lembro-me de muito pouco ou mesmo nada.

Haviam passado três semanas, deitada todos os dias na mesma posição, de bata branca, de lençóis brancos, com uma agulha no braço desde o momento em que perdeu os sentidos. Estava a soro, “acordada”, inconsciente e de olhos fechados.

Era dia, era noite.
Eras tudo quanto eu queria ver e ter, eras tudo quanto eu lembrava ter e querer. Não sabia o teu nome, mas sabia que te tinha pela maneira como me olhavas.
Queria acordar deste sono estranho, onde não tinha imagens, apenas vozes, diálogos entre quem parecia conhecer-me, monólogos à espera da minha resposta. Desabafos e pedidos.
Conhecia a tua voz, por entre as várias visitas diárias, neste quarto frio de hospital, mas nem por um momento soube o teu nome. Quero conhecer-te, a ti, que acho que já conheci, quem acho que tive a meu lado.

Mais um dia passou.

Hoje senti a tua mão a apertar a minha, ouvi os teus mil pedidos para eu abrir os olhos e voltar para ti. Disseste-me que estava em falta contigo, eu tinha uma coisa para te pedir e tu querias sabe-las, exigias que eu acordasse para te pedir.
Agarravas-te à minha mão, como se fosse tudo o que restava, nela sentia os teus lábios, nela sentia as tuas lágrimas, nela sentia o teu calor, era pelo teu toque que eu sabia que há muito existias na minha vida.

Acorda, Eliana, acorda… quantas vezes ouvi esta pequena frase, hoje também eu a grito a mim mesma, dentro da minha cabeça.
Mais uma vez sentia-te a meu lado, com a tua mão na minha, tinhas adormecido junto a mim sentado na cadeira que ninguém ocupava senão tu,
Senti uma claridade imensa no quarto, devia ser dia, por momentos pareceu-me ver umas formas, de algo ou alguém.
Estremeci.
Senti mesmo a tua mão na minha, e com a outra senti o teu cabelo por entre os meus dedos.
Sentia-me acordada de olhos fechados.
Apertei a tua mão e viste-me mexer pela primeira vez, desde que sai de casa para passear sozinha, há mais de três semanas atrás.
Apertaste novamente a minha mão, senti a tua mão gelada na minha face enquanto fazia cara de dor a tal reacção.
Beijaste-me a testa e correste para o corredor, meio aos pulos, meio emocionado, contente de certeza.

Quando voltaste perguntei-te o teu nome; porque te conhecia, porque sabia que eras importante para mim, sentia-o de tal forma que queria saber tudo sobre ti, queria ter a certeza que era contigo que sonhava, que era em ti que eu pensava.
Eras tu, só podias ser tu.
Queria sair daquele quarto branco, tudo menos saudável.
Não sabia o porquê, mas tive uma imensa vontade de sentir a areia nos meus pés descalços, sentir o gosto do sal nos meus lábios numa tarde fria.
Queria lá ir contigo, eu sabia que era contigo, só não sabia o porquê de não saber o teu nome.
- Eu sou o Vítor, conhecemo-nos há oito anos.
Fui a ultima pessoa que falou contigo, e estive todos os momentos aqui a teu lado, para que pudesse ser a primeira cara que visses. O teu pai e o João, o teu irmão, estão a caminho.
Estamos todos tão contentes por te termos de volta.
Temos tantas saudades tuas. Eu quase morria de saudades tuas.
Amanha levo-te para a nossa casa, eu não consegui afastar-me de ti e ate me mudei mesmo para o teu apartamento. Não quero voltar a estar longe, não quero não passar os dias e as noites contigo.
Eu vou tomar conta de ti, como também o fizeste todos os dias comigo. Não tens que te preocupar com nada, o meu nome já sabes, e o resto eu ajudo a descobrir.
Eu amo-te tanto minha querida. Tenho tantas saudades tuas.

O médico ficou espantado com tal acordar, com tal recuperação.
Recomendou-me toda a atenção possível, todo o mimo e repouso; umas ferias valentes sem preocupações, com passeios, conversas e risos.

Eu estava viva e tenho todos os que me amam à minha volta. Sei que tenho presente o meu pai, e o João, meu irmão, a minha mãe à algum tempo que construiu uma família e não está presente como devia, nem hoje a tenho para me dar a mão e me fazer uma festa no cabelo.

Estou viva e tenho o Vítor, eu sei que o ia pedir em casamento, talvez por isso ele more comigo, talvez por isso o meu pai gosta dele, talvez por isso ele esteve todos os dias, destas três semanas, aqui a meu lado.
Talvez o ame. Eu sinto que sim. Apenas não me lembro.
Lembro-me que existes, só não lembro que és o meu Vítor.
Amo-te meu Vítor…
Casas comigo?




Eliana Oliveira
{29 de Abril de 2009}

07 abril, 2009

“Está tudo bem”


Um dia contei-te o meu segredo…
Contei-to cheia de medo
Estava triste e com saudades de outros tempos, bêbeda e deitada na tua cama enquanto me falavas de ti e recordavas momentos em que estivemos juntas.

[Tanta falta me fazes hoje, mesmo não te tendo.]

Dizias-me isto e aquilo, convidavas-me para ir para junto de ti e quase me convenceste.
Tentavas pôr juízo nesta minha cabeça, enquanto me tinhas deitada sobre as tuas pernas e me fazias festas na cabeça.
Quase adormecia no teu colo, entre frases mal feitas. Entre vontades contadas e desejadas, deixo escapar o meu segredo.


- Tinha medo que me odiasses.

No último dia em que discutimos, saíste a correr de lágrimas nos olhos, e eu nunca te impedi.
Foi o último dia em que discutimos, e o ultimo em que te vi.
Vejo-te hoje, calma, pronta a ajudar, a dar-me o teu consolo, o teu sorriso, o teu “Está tudo bem”.
Não me consigo esquecer, não me consigo perdoar. Devia ter corrido em teu alcance, não devia ter dito metade das palavras que usei para te magoar.

Foi num outro dia em que estava bêbeda, em que discuti com a mãe, em que sai com o teu carro e cheguei de táxi, em que via o mundo contra mim, em que desejava estar onde estás tu agora.
E hoje, contigo a apoiar-me, merecia eu trocar contigo. Merecias tu mostrar a todos o teu lindo sorriso, deixares-te passear no carro que eu destrui.

- Vamos trocar?

Tenho medo que odeies, porque não te impedi dessa tua última viagem.
E agora por minha causa, imagino-te na minha cama vazia, e ainda por cima com esse olhar de “Não tem mal”, não existes mais.
Não existes mais, sem a presença da minha garrafa já bebida, da solidão que vivo e da mágoa que sinto.
Eu já me odeio. Não me odeies tu, não hoje.
Não hoje, porque sei que também será o meu último.
Agradeço-te, porque o meu último não acaba contigo a morrer (apenas a uns metros de casa, enquanto olho da janela bêbeda e me riu por teres caído. Odeio-me por não ter sido eu, por não te ter impedido, por ter discutido contigo, por ser a culpa da tua morte); agradeço-te porque no meu último dia te tenho a meu lado a afastar o cabelo da minha face, a dizer que “Está tudo bem”, simplesmente te tenho a meu lado.
E bêbeda e de agulha no braço, ouço-te a dizer, num sussurro calmo, “Eu nunca te iria odiar, e se tivesses morrido primeiro esperava que me viesses buscar para junto de ti, porque adoro-te demasiado para te odiar”.

“Fecha os olhos mana, e quando os voltares a abrir, eu serei a primeira pessoa que verás.”

(Sorrindo, diz:) “Está tudo bem.”



Eliana Oliveira
{7 de Abril de 2009}